quinta-feira, 23 de julho de 2009

Macabéa - Menina - Mulher


A vida aconteceu apenas por um acaso. A vida é um imprevisto, uma insignificante eventualidade.

Macabéa é inocente, de identidade reprimida, um risquinho de gente. É menina nordestina, pobre guria que veio ao Rio de Janeiro em busca de trabalho. Existência de miséria, órfã de pais, de sonhos, de escolhas e de ambições. Tem uma certeza, a certeza desesperada de não ser ninguém. Com seu rosto desfigurado, magra, consome cachorro quente. Um imenso nada a rodeia. É carente de tudo, até de palavras. E de um ser humano.

Macabeazinha da cartomante. O seu benzinho, sua florzinha, a coisinha engraçadinha, a vocezinha, sua adoradinha, sua filhinha. Nunca antes Macabéa sentira tamanho carinho e, de repente, é concedido em forma de furacão. Agora sim: Macabéa está grávida - grávida de futuro. Ao sair da casa da cartomante, está embriagada de sonhos, vastamente prometidos, dados.

No entanto, ali mesmo, numa rua qualquer, seus sonhos são desfeitos, como num sopro. Desejos roubados, mesmo antes de assimilá-los. Sua breve ânsia, o fiapo de esperança e todo o arrebatamento são destruídos para sempre. Um aborto. Chegara o seu momento... A Hora da Estrela.

Eu vou ter tantas saudades de mim quando eu morrer...

Ai, menina, que paixões fazes nascer na gente. Oh, Clarice! Que metáfora de nossa realidade e de nosso povo nas páginas deste romance. Um Brasil sofrido, de tanta dor, mas de tanta dor... Uma denúncia. Quanta identificação, quanto sentimento.

Macabéas. Somos tantas!

sábado, 18 de julho de 2009

Laços

A palavra ronda o meu espaço. Com voz de sussurro percorre minha fadigada melancolia. Saracoteia monossilábica em minha volta, deixando-me tonta na expressão de minha ânsia. Então, eu a busquei e deixei que deslizasse substantiva por sobre essa alba página. Nem eu, nem ela sabemos se há sentido no vértice desta mútua aflição. Mas também não é necessário que haja. Todavia, acontece algo estupendo, uma inventividade. Somos uma unidade e estamos ligadas por um fio, como as pérolas que compõem um colar. O texto que juntas formamos é um quadro que contém algumas pobres figuras, mas é muito precioso - por si só. O quadro é de cor púrpura. Eu, o pintor; a palavra, a tinta.

Ela vigia o meu espaço e mora comigo. Deseja que eu a use para ser concreta no cenário de meus sentimentos. Calada, me olha, afeiçoando-se. Agora, já bem mais calma, despojada de qualquer lamento, ocupa estas letras com brilho escarlate. Queria era uma grafia, uma requebrosa forma adjetivada na frase de um destino, conjugada e escrita. Palavra - nascida do parto normal de minha embriaguez.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Rouge Cardinal



No meio dos arbustos nasceu uma planta. Enroscava-se nos pequenos ramos, aprontando a maior orgia. Dava para ver seus fios, com os quais se segurava e se prendia. Olhando mais de perto, pude ver que em suas folhas havia pequenas nervuras - um pouco mais salientes, como as das clematis em meu jardim. Era uma planta trepadeira, disso eu tinha certeza. Mas, seria flor ou era uma espécie de erva? Cuidei-a!
A planta, ali no canteiro, nascera sem ser por mim semeada ou plantada. Viera assim... inesperadamente, e estava a roçar seus braços na cerca branca, procurando um espaço para sua exibição. Quando a vi, já estava a lançar seu nariz por cima das outras folhas. Crescia e vicejava. Eu a regava sempre, todos os dias. E então, a surpresa: haviam crescido botões: um, dois, três... Muitos! Ela floresce, gritei. Depois de uma longa gestação, os botões abriram.
No meio dos arbustos nasceu uma planta: uma clematis, de cor rubra, com pétalas aveludadas. Bonita e soberana, como o seu nome. Flora. Flor, principal. Rouge Cardinal.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Da felicidade






A felicidade está aqui, pertinho de mim, junto a nós... É um sentimento, um estado da alma. Ela percorre nossas veias e alcança o coração, enchendo-o de júbilo e de bem- estar. A alegria é uma essência de ventura. É preciso que a usemos várias vezes ao dia em receitas variadas, de modo que, possamos viver melhor. É uma fórmula inventada para aperfeiçoar o nosso espaço, é necessário saboreá-la. A felicidade se apresenta, na verdade, através de pequenos mimos que, de forma meticulosa, nos são ofertados. O contentamento está em centenas de coisas que bordejam a nossa esfera, podem ser abstratas ou evidentes.
A felicidade pode ser silenciosa e serena como as águas de um lago ou tempestuosa como uma chuva de verão. Ela se esconde num olhar, num sorriso, num gesto ou num abraço inesperado. É flor, é criança, é música e... o soar de uma palavra.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Nas tuas mãos



Três histórias. Três gerações. Três mulheres: Jenny, a avó; Camila, a mãe; e Natália, a filha. Através do diário da primeira, do ábum de fotografias da segunda e através das cartas de Natália, a autora nos conduz de forma deliciosa e suave pela vida de cada uma delas, que acontece na classe média alta de Lisboa. Com um laivo de melancolia e com uma sensibilidade cativante, a autora – Inês Pedrosa – nos revela os segredos, os amores e as desilusões desse universo feminino.

Nas tuas mãos, um romance delicado e belo.

Uma jóia da literatura portuguesa!

terça-feira, 7 de julho de 2009

Caminhos


Eu acabara de chegar. Era hora de descobrir os mistérios e segredos desse arquipélago, onde a partir de então passaria a viver. Olhei ao meu redor. Vi uma cidade linda e faceira, debruçada por sobre o espelho azul das águas do Mar Báltico. As casas coloridas ao longo dos canais revelavam estilos e histórias de séculos passados, quando intrépidos marinheiros ancoravam ali suas embarcações. Segui em direção ao mar, sentindo na pele a brisa suave da maresia. A atmosfera mágica da portuária Copenhague me envolvia.

Era uma tarde morna de verão. Extasiada com o novo que me envolvia, senti que estava com a garganta seca e decidi tomar um café num bar da esquina. Atrapalhada, esbarrei numa mesa, onde uma senhora elegante comia um sanduíche e tomava um vinho tinto. Pedi desculpas com um forte sotaque, revelando imediatamente meu estado de imigrante. Ela, então, desculpou-me com um lindo sorriso. Não resistindo à simpatia encontrada, contei-lhe que era brasileira e que mal apenas falava o seu idioma.

Comovida, tomei meu café, enquanto esquecia-me em pensamentos. De repente, tornei a surpreender-me com a senhora dinamarquesa, pois ela veio até a minha mesa e, de forma natural e descontraída, cantarolou e sambou o ritmo contagiante de Garota de Ipanema, de Tom Jobim e de Vinícius de Moraes:

Olha que coisa mais linda, tão cheia de graça

É ela menina, que vem e que passa

Num doce balanço, a caminho do mar.

Bossa Nova! – disse, retirando-se.

Como que hipnotizada, acenei com a cabeça. Falávamos, enfim, a mesma linguagem: a expressão clara e precisa de meu país latino, através da mais bela canção brasileira. Neste momento, deixei-me levar pelo embalo inconfundível da Bossa Nova, encontrando-me no limite impreciso entre o sonho e a realidade. Adornei minha alma, fortificando-me para prosseguir as cruzadas por estes espaços ainda tão estrangeiros. Metade de mim era saudade.

Ainda perplexa com o que acontecera, encontrei um guardanapo em cima de minha mesa, em cujas extremidades estava escrito o nome e o número do telefone da bailarina até então desconhecida. Ela o havia colocado ali, sem eu perceber. Em polvorosa, corri atrás dela para agradecer o seu gesto, não obstante, havia sumido por entre a multidão.

Tornei a olhar ao meu redor. O castelo à beira do cais parecia encantado, como se ali dormisse – em cima da ervilha – uma princesa de verdade.

Crônica reduzida - premiada no Concurso da Biblioteca Raízes, Genebra.

sábado, 4 de julho de 2009

Tempo

Fotografia: Frank Hauser

O tempo é o maior tesouro de que um homem pode dispor. Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira. O equilíbrio da vida está essencialmente neste bem supremo.

Raduan Nassar, em Lavoura Arcaica