terça-feira, 29 de março de 2011

A onda


A grande onda de Kanagawa - Hokusai

Sendai. A menina encontra sua caixinha rosa no meio dos escombros. Passa a mão em seu tesouro e tira os restos de lama. Uma lágrima abre um sulco em seu rosto infantil. Ela procura mais coisas, como quem procura por um sonho. De seu quarto nada restou, não há mais brinquedos, nem livros, nem álbum de fotografias e, nem tampouco, cama e cobertores. Não há paredes, já não existe mais casa. Somente seu baú rosa estava ali, como se por ela esperasse, como se fosse um milagre - tal qual sua vida... que lhe fora poupada. Ela quer entender por que a onda levou tudo o que tinha, tudo o que mais amava. Até mesmo seus pequenos segredos e sua fantasia foram arrastados para o nada perto, para o tudo longe. A menina olha ao redor com desalento. O que vê é um cenário centenas de vezes maior do que tudo o que poderia imaginar. Olha... e vê uma verdade irremovível - a sua. Seu coração bate forte. Como refazer caminhos? Onde buscar um fio de esperança? Em que lugar construir um novo ninho? E as cerejeiras? Elas voltarão a florir?

Menina pequena sente o frio e o vento. Vento que vem do mar. Do mar - que fez onda grande. Menina que talvez se chamava Yasu ou Emi. E tantas outras: Michi, Hari, Kaori, Aika ou, quem sabe, Harume. Um nome, uma história. Destruição e perda.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Solidão

Solidão e sentimentos. Sucessivos.

Silêncio e saudades. Simultâneos.

A solidão é um tênue silêncio. Silêncio indecifrável, abstrato. No entanto, está em toda parte e sua voz é uma permanência quase resignada. A solidão, muitas vezes, estimula dores e esperas, tão infinitas, tão visíveis, guardadas, porém, num primoroso invólucro. Adquire então, uma suave densidade. Silêncio que não nos faz sonhar, é como um intervalo de vida, um vácuo desprovido de tempo e de magia. Se amamos alguém, a solidão inexiste. O amor obtém uma dimensão individual maior, promoverá a busca constante de nosso ser, alimentando-o com o verve de muitas surpresas e fantasias. A afeição que temos e que partilhamos é como um feixe de flores. Podemos espalhá-las. Estar só é uma opção. Solidão é um sentimento.


Imagem: by carroflejn

sábado, 26 de março de 2011

Portinho


Há uma cidade que eu amo. Ela é linda, um pouco misteriosa também. É banhada pelo Guaíba, que é um rio... Ou seria um lago? Em minha cidade tem jacarandás floridos, o Brique da Redenção, o Mercado Público, a Feira do Livro, o gasômetro, o Cais do Porto... Falo de meu Portinho, orgulhosamente. Porto Alegre, é a cidade de Quintana, arquitetada por seus versos, envolvida por seu lirismo e marcada pelo jeito maroto do poeta menino. É o seu berço, foi sua inspiração, sua poesia. Há tanta esquina esquisita... tanta nuance de paredes, há tanta moça bonita. Os versos de Quintana, vão formando o mapa da cidade, como quem examinasse a anatomia de um corpo... As ruas de Porto Alegre são mais bonitas que as ruas de outra cidade. Sim, pois lá tem a ruazinha que tosse, tosse, engasgada, coitadinha! Tem também a Rua dos Cataventos, a Rua da Praia ( que fica bem longe do mar...) e a Rua da Ladeira. Ruazinhas sossegadas – fabuladas e imaginadas. E olhe, há uma rua encantada, que nem em sonhos sonhei. POA metrópole, nossa capital. Brasileira.

Imagem: embratur

quinta-feira, 24 de março de 2011

Meu ônibus



Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia eu fiz o cimento da minha poesia.

Vinícius de Moraes

Todos os dias esperava por meu ônibus. Era um veículo amarelo, flavo, como as gemas dos ovos. Inquieta e feliz, apreciava a sua passagem, acompanhando- o, em sua lentidão, até perdê-lo de vista. Aos meus olhos, era o ônibus mais formoso do mundo, o meu Expresso Dourado - assim passei a chamá-lo.

A viatura cor de ouro vinha na textura mais perfeita de meus sonhos. Na parte frontal, rente ao grande vidro, havia o primeiro banco, o meu trono. Minha maior ambição era viajar com o Expresso Dourado e sentar naquela poltrona - a da frente, de onde eu poderia acompanhar, em larga vista, os panoramas mais belos de minha terra.

Eis que, após longa espera, meu desejo estava por se realizar. Mamãe faria compras na cooperativa de Poço de Tapiras, a vila mais próxima de nossa aldeia, e me levaria junto. Para chegar até lá, teríamos que viajar com o Expresso Dourado, indispensavelmente. Entrei em delírio, já nem dormia. Durante dias fiquei torcendo para que o trono do ônibus estivesse desocupado. Estava completamente obcecada.

No dia da viagem, pude usar o meu vestido floreado, vestido de domingo. Alisava delicadamente as pregas e ajeitava os topes com precisão, verificando dezenas de vezes se tudo estava na mais perfeita ordem. Naquele momento era menina-princesa, posto que, sem delongas, iria sentar em meu trono. Quando o ônibus se aproximou devagarinho, meu coração chegou a convulsionar. Olhei para o grande vidro e quase morri de felicidade, pois o primeiro banco estava desocupado. Sorri aliviada... Chegara, enfim, o meu momento!

Todavia, a quantidade exorbitante de malas e bolsas, balaios e pacotes amontoadas ao lado do motor, impediram a minha passagem para o assento frontal. Num repente, esqueci que era uma espécie de fadinha em roupas de domingo e, com a agilidade de um primata, tentei transpor os obstáculos, quando então uma grossa voz interrompeu minha odisséia. Era a cobradora que estrondeou:

- Vá sentar em outro lugar, menina! Não vê que aqui está cheio de bagagem?

Bagagem? Sentar em outro lugar? Mas como? Suas palavras soaram como um trovão. Sem nada entender, minhas pernas amoleceram e eu perdi as forças. Meu grande sonho fora destruído ali... em questão de segundos – haviam proibido de me sentar no trono. Todo o espaço se encheu com os fragmentos de minha mágoa. A cobradora olhou-me com a aspereza de um ditador. Estremeci de medo e saí correndo.

Pálida, atravessei o corredor do ônibus e fui sentar ao lado de minha mãe. Segurei sua mão com a fragilidade de um bebê. Uma grossa lágrima turvou meus olhos e caiu em cima do vestido floreado. Esfreguei a lágrima até secá-la. Não queria que vissem o meu choro. Com os olhos flamejados, sentada num banco qualquer do meu ônibus, segui minha viagem para Poço de Tapiras.

A vida seguia o seu rumo. E o Expresso Dourado continuava a passar pela estrada de minha aldeia dia após dia, ano após ano, e eu prossegui a esperá-lo, fielmente. Contudo, já não vinha dotado com o mesmo brilho de outrora, perdera sua cor - a cor de meu entusiasmo.


Imagem by: -bookslove66

sábado, 19 de março de 2011

Por contar

A vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la.
G. Garcia Marquez

Na quinta feira, eu voltava de um passeio pelo centro da cidade. Com um buquê de tulipas nos braços, ainda tive que comprar pão na padaria bem perto de minha casa. A moça que me atendeu, pelo visto, era nova na padaria, pois ainda não a conhecia. Enquanto ela embrulhava o pão, conversamos algumas coisas. Em face ao meu sotaque - penso - ela me perguntou: De que país você vem? Sou brasileira - respondi, sorrindo. Para minha surpresa, ela então me perguntou: - Entonces usted tiene que hablar un poco de español, ¿verdad? Falei que, infelizmente, nunca havia aprendido espanhol, mas que entendia algumas coisas, posto sua semelhança com o português. Neste contexto, ela falou: Brasil es un país muy bonito! Ah, doce frase! Conversa vai, conversa vem... descobri que a menina vendedora era polonesa e, em sua formosura, disse-me que se chamava Iwona. Nossa, quanta coincidência, falei. Pois, na madrugada daquele mesmo dia, havia levado Christian para o aeroporto, uma vez que estava rumando para Varsóvia, onde está participando de um encontro de alunos de escolas alemãs, sediadas no estrangeiro. Iwona contou-me ainda, que nascera em Cracóvia, uma linda cidade da Polônia.

Que euforia. Saí da padaria misturando os idiomas, com pão e com alegria. Em casa, enquanto colocava as tulipas no vaso, lembrei-me de vários encontros parecidos como este, com Iwona. Muitas vezes assim já sucedeu. São regalos no meio do caminho. Vou empilhá-los.


Imagem:Ila

sexta-feira, 18 de março de 2011

sábado, 12 de março de 2011

Invento realidades

Invento realidades, estou a moldar um espaço para nós. Essa, é amarela, além de verde e azul – quase tropical. Construir realidades é como compor pequenos poemas, - tal qual haicais- desenhados em papel de seda. Você deve me achar louca, mas quando se trata de sonhos e de realidades... perco-me em adoráveis criancices. É como subir numa roda gigante e admirar o mundo lá de cima. Sei que não quer ouvir minhas conversas, pois seus olhos navegam inquietos na partitura que acabou de tirar da gaveta. Nesta folha está o seu mundo, em forma de clave de sol, de breves e semibreves e todos estes símbolos, dos quais pouco entendo. Este é o mundo interlúdio que povoas - você e este piano escuro. Suas mãos tocam as teclas e a música suave chega em ondas para mim. Adoro-a, mas não a executo. Somos tão diferentes, não é? Você, com dedos compridos, desliza a vida em notas musicais. Quanto a mim, eu passarinho. Meu cenário é aberto, preciso ver o céu e o mar para produzir. Pouso em flores, toco o vento... somente assim posso inventar minhas realidades. Ou seriam apenas sonhos em papel dobradura? Talvez em papel de arroz...


Imagem by: Soundslikerain

quarta-feira, 2 de março de 2011

Lugar ao sol

Preciso sair, o universo me espera. Visto o casaco e as botas quentinhas. A rua estreita e silenciosa é o berço perfeito para aninhar meus pensamentos. Ali cabem todos, os grandes e os pequenos. As casas abraçadas atraem meu olhar. Não posso deixar de admirar as janelas. Em uma delas vejo castiçais prateados, na outra, um vaso com tulipas... ou uma pequena figura de bailarina, ou então ainda, um porta-retrato, e tantas coisas bonitas. Ouço os jardins, há algo de estranho nestas plantas sem folhas. Elas ciciam. O céu nublado dessa manhã de março não me incomoda. Sei que o sol virá em outras horas. É preciso esperar. Engraçado! Falar em sol/lugar... isto me lembra Veríssimo e de Um lugar ao sol. Hoje sou como Vasco por estes Caminhos Cruzados. A trilha segue e abre vias mais largas. E agora, Clarissa! Ah... Sua adolescência acendia minha alma de quimeras e eu me ria quando a protagonista passou a usar sapatos de salto alto... Neste emaranhado de ideias eu não posso deixar de ouvir uma Música ao longe. Nossa, isto parece perseguição. Assim como Clarissa, muitas vezes penso se os sentimentos são realmente verdadeiros. E para terminar esta crônica estranha, falta dizer que, quando o Tempo e o Vento vier e passar - estarei em casa novamente: aí, de onde você me lê. Então tomarei tempo para reler Olhai os lírios do campo - a história de Eugênio e Olívia. O resto é silêncio.

A rua estreita é o berço apropriado para aninhar meus pensamentos. Abro a porta de minha casa, tiro as botas e faço um chá quente. Vou escrever para você. Obrigada, Érico.

Imagem by ~onthespoke