quarta-feira, 28 de abril de 2010

Sonhos e tambores

Sonho com uma África em paz consigo mesma.
Nelson Mandela

Jabu e eu soltamos pipas. Empinar pipas é a melhor coisa para Jabu e para mim, desde que mamãe foi embora. Mamãe morreu de uma doença incurável, faz cinco meses. Jabu é meu irmão, tem oito anos e eu cuido dele. Jabu faz suas próprias pipas, faz com papel de pão e com gravetos. E elas são bonitas. Quando empinamos as pipas, elas voam bem alto, lá no céu. E então é muito divertido. Jabu grita e dá risadas. E eu fico feliz também. Ah, eu sou a Samia.

Hoje tia Farah fez birotes em meu cabelo, são seis birotes. E ela enfeitou eles com laços coloridos, assim como mamãe fazia. Quando ficamos sozinhos, tia Farah nos levou para sua casa. Moramos agora em Joanesburgo: Jabu, tia Farah e eu. Aqui na cidade não tem baobás e nem animais. Jabu imita os animais. Acho que sente falta deles, dos pássaros. Eu também tenho saudades da aldeia e de nossa casa de barro, redonda. Tinha um telhado de sapê... Lá no pátio dançávamos. Quando lembro, às vezes, cai uma lágrima.

Todos os dias vou para a feira. Vou com Farah, ela me leva. Na feira vendemos óleo de palma, abóboras, milho e outras verduras. O que eu não gosto é saber que Jabu fica sozinho em casa. Tia Farah disse que ele não pode ir na escola, é longe demais. Jabu toca tambor e quer tocar numa banda, um dia. Um dia, quando for grande. Então Jabu vai ser famoso. Eu sei disso. Sim, meu irmão vai ser um grande tamborileiro. Mas agora ainda não. Agora ele precisa cuidar de nossa casa. Tia Farah e eu vamos para a feira. Todos os dias. E Jabu fica sozinho.

Eu, Samia, tenho um sonho. Meu sonho é diferente, não sei tocar tambor. Quero aprender a ler de verdade. Farah disse que vai me ensinar, mas ela tem pouco tempo. Eu sempre trago jornais velhos da feira, estes que as pessoas jogam fora. Então eu recorto palavras dos jornais. Muitas palavras eu recorto, e formo quadros. Não, não é pintura. São letras e palavras de todos os tamanhos que eu colo no papel. Aí fica bem bonito, como um quadro. Parece histórias. As palavras que recorto tem voz, elas cantam para mim. Sim, eu escuto quando cantam. Um dia, vou ler de verdade. Sim!

Hoje, quando tia Farah e eu voltamos da feira, Jabu contou. Disse que veio uma moça aqui em casa, falou que ela era professora. Jabu estava tocando tambor, e ela ouviu. Gostou do tambor. Falou com Jabu e disse que vem amanhã aqui novamente, à noitinha, quando tia Farah e eu estamos em casa. Ela quer levar Jabu para uma escola, uma escola de tocar instrumento.

Agora vamos empinar pipas, Jabu e eu. E elas vão voar bem alto, lá no céu. E então contaremos para mamãe. Os sonhos... vamos contar para ela.


Imagem by Livala

12 comentários:

Sueli Maia (Mai) disse...

A história de Jabu e sua irmã é uma triste história como tantas outras em que o sorriso e a esperança são sonhos e pipas no ar.

Pipas tremularão nos céus e os tambores soaram e soarão até que a humanidade tenha olhos de ver e ouvidos de ouvir 'o som das distâncias'.

belo texto, Ilaine, triste todavia.

Elcio Tuiribepi disse...

Oi Ilaine...estou aqui tentando imaginar de onde surgiu a ideia desta história tão verdadeira, tão cotidiana...
Fiquei pensando naquelas crianças africanas, correndo, pés descalços e mente cheia de sonhos e esperanças, querendo voar além pipa, além mar, além céu...querendo viver além fome, além sede e um monte mais de "aléns" que não fazemos idéia...sei lá...viajei no texto...
Um abraço na alma...bjo

Anônimo disse...

Papagaio de Papel

Composição: Sthel Nogueira

Arco-íris risca o céu
E desperta o meu olhar
Colorindo o horizonte
Como um mensageiro astral
Lá no meio da cidade
Beira rio ou beira mar
Sopra a brisa de mansinho
Passarinho vai cantar
E os meninos vão se olhando
Tá na hora do desafio
Cruzam linhas a dançar
Pela imensidão do céu
No ar

Papagaio de papel
Lá no alto és condor
Leva longe os meus sonhos
De menino e de amor
Depois volta cá pra terra
Que é pro povo te olhar
Voa alto, voa leve
Como manda o teu senhor
E não te percas no caminho
Papagaio, por favor.

Arco-íris risca o céu
E desperta o meu olhar
Colorindo o horizonte
Como um mensageiro astral
Lá no meio da cidade
Beira rio ou beira mar
Sopra a brisa da saudade
Passarinho vai cantar
E os homens vão se olhando
Tá na hora do desafio
De votar a ser criança
Sob a imensidão do céu
Sonhar

Papagaio de papel
Lá no alto és condor
Leva longe os meus sonhos
De menino e de amor
Depois volta cá pra terra
Que é pro povo te olhar
Voa alto, voa leve
Como manda o teu senhor
E não te percas no caminho
Papagaio, por favor.

Papagaio de papel aqui em Minas é o mesmo que pipa.
Texto maravilhoso!
Bjs querida.

Jacinta Dantas disse...

E não é que, com seu conto, fui ter com minha infância/adolescência levando meus irmãos mais novos para empinar papagaio(assim chamávamos as pipas) do alto do morro?. Nossa! revi a menina Jacinta pegando as caixas de balas e jutando as letras...

Uma história de sonhos e, porque não dizer, pureza. A pureza de quem ainda se permite sonhar. E, nem preciso dizer que gosto muito desse seu jeito suave de contá-la.
Grande abraço

Francisco Sobreira disse...

Um texto, Ilaine, que fala de duas crianças pobres, dos seus sonhos, escrito com simplicidade e que privilegia o coloquial. Sensível e comovente. Um abraço.

eder ribeiro disse...

Eu já tive muito deste sonho, não o de soltar pipar, mas de alcançar o céu qdo o solo ressequido pelas amarguras do não "ter" por não "ser" me fizeram ver na minha "pobreza" do ter que ser está além de uma questão financeira. Obrigado, com este texto, me remeter para minha infância-adolescência e saber que a união familiar me fez chegar onde estou, sendo não pelo o que tenho, mas pelo que sou. Bjos querida Ilaine.

Sandra Gonçalves disse...

Queria desculpa o sumiço...
Mil perdões...
Belissimo texto uma liçao de vida.
tenha dias lindos, Bjos achocolatados

Josselene Marques disse...

Ilaine:

O seu texto me comoveu sobremaneira. Não só por causa dos temas abordados (pobreza, analfabetismo), mas porque sou professora e tenho consciência da falta que fazem a alfabetização e o letramento na vida de qualquer pessoa.
Tambem fiquei a imaginar quantos tiveram o privilégio de aprender a ler e não valorizam a leitura, desperdiçando, assim, essa habilidade/condição de leitor.
Como sempre, é um prazer visitar o seu rico e lindo espaço virtual.
Ótimo feriado!
Abração, amiga.

Canto da Boca disse...

Ila, escrever, todo mundo escreve, mas nem todos tem talento, o que não é o seu caso. Adoro as suas histórias (com agá mesmo!), adoro como encadeias o desenrolar delas, como cria os personagens, o pano de fundo que denuncia o descaso das autoridades diante do seu papel de estado; abordas também com muita argucidade a solidariedade, a generosidade; trazes à baila uma cultura que é a matriz de todas as culturas e no entanto, nem sempre reconhecida em sua singularidade. Confesso que tudo que diz respeito ao continente africano me encanta e me deslumbra, sonho com o dia em que a África ocupará o lugar que é seu na história da humanidade; que deixará de ser o continente desconhecido e inserido como "sujeito diferente", com suas fragilidades, mazelas, misérias e belezas, e que façam parte do mundo de todos. Que a beleza da África, a sua desmedida capacidade de resistência, a criatividade e a inteligência, possa explodir no coração das pessoas brancas, amarelas, roxas, azuis....
Que bom que pessoas como tu se preocupam em trazer a nossa África para cá, ainda que na simplicidade de um texto, que estimula a nossa busca por esse outro mundo que também é nosso.

Parabéns, querida e obrigada por tê-lo escrito!

Um beijo grande e um maravilhoso final de semana!!!

Paula Barros disse...

Estou emocionada. Ilaine, vou repetir, gosto de ler suas histórias.

Gosto de frases curtas. Elas me prendem.

beijo

Sylvia Araujo disse...

Quanta vida você faz escorrer da dor! imensidão de um coração de criança é incalculável. E ela está bem aí, inteira, radiante, nestas linhas deliciosas.

Lindo!

Beijo, flor

Berê disse...

Que maravilha, dá pra imaginar muito bem a cena... Adorei.