quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Muralhas


A tarde se desfazia com lentidão. Bolhas transparentes de água salgada roçavam a areia da praia. Minha alma azulejava com o céu. Pequenas nuvens enfeitavam o firmamento já quase dourado, pareciam gaivotas. Senti um cheiro de milho cozido, de abacaxi maduro, de cocadas. Sabores de férias, no Brasil.

Uma doce voz entrecortou o momento:

Tiaaa! A senhora tem um pedaço de pão para dar?

Olhei para a rua e vi um menino. Era pequeno ainda, roupas esfarrapadas, pés descalços, rosto sujo. Tinha em torno de sete anos, uma criança de mãos calejadas, castigadas. Seus olhos eram negros e belos, mas assustados. Olhou-me com carinho, enquanto pedia esmola. Senti um nó na garganta. Uma grade de ferro nos separava, do lado de fora estava ele, do lado de dentro, eu. Aprisionada.

Pobre menino. Parecia um passarinho que havia caído de seu ninho, mas que ainda não sabia voar. Perdeu-se de seu bando, pensei. Grudou seu corpo miúdo na grade, como se quisesse passar por entre as vigas de ferro. Queria descobrir mais detalhes do mundo que não lhe pertencia, impenetrável, frondoso. Olhou com curiosidade. Ele e eu. O menino passarinho, eu na gaiola. Privilegiada. Éramos diferentes, somos desiguais. Contudo, tínhamos algo em comum: o país em que nascemos.

A sólida muralha nos isolava, um paredão entre seres humanos. Do lado de dentro estava eu, veraneando numa casa alugada à beira do mar. No jardim havia redes estendidas, jovens e crianças comiam picolé. A cozinha estava recheada de vinhos, sucos, café, chocolates... Na varanda, estofados confortáveis enfeitavam o ambiente. E, ali na calçada, um menino apertava as bochechas pálidas na cerca, e me olhava. Estava com fome.

A tarde se desfez, tristemente. Arrumei minhas coisas e fui embora. A grade de ferro ficou distante, separando destinos, vidas. Portões continuam protegendo lindas casas. Demarcações altas e largas - fortificações. E, do lado de fora, o menino de olho bonito está aprendendo a voar - a seu modo. Sobrevoará muralhas.

Texto já publicado no baú.

15 comentários:

Anônimo disse...

Esse é o nosso mundo!
Bom dia amiga!
Eu não acordo cedo não. Eu durmo tarde.
Bjs querida.

Osvaldo disse...

Ilaine;

Que bom seria se pudessemos mudar o Mundo e as suas desigualdades...
Mas se Ele assim o fez, quem somos nós pra discordar!...

Por isso, também eu me questiono se há na Terra justiça de Deus!!!.

bjs, Ilaine,
Osvaldo

Cris França disse...

Os contrastes todo dia nos chamam de volta de nossos sonhos. bjs querida!

Paula disse...

Que forte! Tão comum por aqui, infelizmente. Beijo, amiga!

Luiz Caio disse...

Oi Ilaine! Como vai?

Os muros, infelizmente, são cada vez mais necessários. As crianças de ruas, muitas delas, apesar de continuarem, de certa forma, inocentes, Também já não são tão inofensiveis... Não sei não! Mas acho que este mundo está perdido!

Beijos.

Carla disse...

Lindo texto, Ilaine!
O medo da violência faz com que nos tornemos detentos em nossas próprias casas. Por outro lado, não podemos permitir que o medo seja desculpa para o egoísmo. Precisamos nos compadecer dos mais necessitados.

O meu outro blog é o "Borboletras", está na minha lista de blogs. É dedicado às crianças. Ainda estou começando nesta modalidade de escrita, por isso os textos ainda são caóticos, mas espero me aperfeiçoar com a experiência.

Bjos

Sandra Botelho disse...

Que triste isso né amiga...
mas fazer o que neh?
Olha. tem selinho no meu blog prá vc.
Bjos no coração!

Canto da Boca disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Canto da Boca disse...

Pelo que lhe conheço, fiquei de cá a pensar o quanto esse "Privilégio" lhe corta a carne, a alma e o coração. Quando se é humana, o nosso eu-outro é sim um pedaço de nós, e o que lhe atinge, atinge a nós também. Mas não creio que o seu lamento, o meu lamento, o lamento de toda gente não seja, será/serão suficiente/s para a/s mudança/s que queremos, mas começa por aqui, com a nossa indignação, os desmandos do mundo são de nossa responsabilidade porque somos nós quem escolhemos os nossos desgovernantes, e precisamos dar um basta nessa falta de ética, nessa estética disforme da corrupção, nessa imoralidade em que se tornou a política partidária. Essa famigerada impunidade que campeia solta no país ainda vai manchar muitas terras de e com sangue de inocentes.
Mas penso também que seu texto lindamente sentido, e cheio de significados é um bom momento para refletirmos, debatermos, discutirmos o que se passa na nossa sociedade, o que não queremos e como podemos combater, mudar, transformar essa realidade tão dura, tão cruel e tão vergonhosa.
Eu não abro mão das minhas utopias de achar que com EDUCAÇÃO de qualidade, com um professor bem remunerado e respeitado, reforma agrária, distribuição justa de renda, pode vir a ser o começo do fim dessas grades e desses fossos sociais. Não estou dando fórmula de mudanças sociais, longe disso, estou dizendo em que acredito. E estou firme e forte na campanha: Não Reeleja Ninguém, pela MORALIZAÇÃO do Congresso Nacional! Inclusive está postado em meu blogue a imagem dos políticos corruptos, sendo defenestrados do Congresso. Ninguém na minha família votará, ninguém, e não é uma família pequena não....

E trago-te um poema do Drummond:

Meu país, esta parte de mim fora de mim
constantemente a procurar-me. Se o esqueço
(e esqueço tantas vezes)
volta
em cor, em paisagem
na polpa da goiaba na abertura
de vogais
no jogo divertido de esses e erres
e sinto
que sou mineiro carioca amazonense
coleção de mins entrelaçados

(Drummond, em Canto brasileiro), e um beijo bem grande cheio de carinho!

lula eurico disse...

Ilaine, amiga, comovente essa situação. Algo que nos escapa ao poder individual. A solução disso se dá no coletivo. Concordo com a Boca. Mas não é só não votarmos, mas não consumirmos nada do que se produz com trabalho feito por crianças, nem por trabalho escravo. O capitalismo só entende a lei do lucro. Que as comunidades dos países mais ricos não comprem produtos de países (ricos ou pobres) que explorem crianças. Isso já é um começo. Gandhi começou a libertação da Índia pedindo para cada cidadão tecer seu próprio linho e enfraquecer a tecelagem britânica.
Pode ser por aí.

Abraço fra/terno.

Ana Luiza F. disse...

Adorei te ver lá n Bar..., menina. Volte quando quiser viu? A porta está sempre aberta para os amigos e há por lá, sempre uma mesa reservada. Texto forte e realidade dura. Concordo com o comentario de um amigo teu que diz, que o nosso trabalho deve iniciar não dando dinheiro por mais que isso nos doa. Pois se eles não tiverem esse "ganho" quem sabe se a vida muda. Mas, principalmente, se o poder público seja em que esfera for, fizer sua parte bem feita, a realidade destas crianças mudará. Um beijo grande e bom domngo.

Sonia Schmorantz disse...

Pobres meninos, cujo ninho muitas vezes se desfez e nem tem para onde voltar, até que possam voar, se a vida assim permitir...
beijos, linda semana

eder ribeiro disse...

Eu, filho do sertão, conheci muito destas muralhas, e graças a Deus e a fibra que há incutida no sertanejo sobrevoei... Emocionou-me tua história, querida Ilaine. BJos.

Rafael Castellar das Neves disse...

Olá Ilaine!!

Antes de mais nada, lhe parabenizo pelo blog e seu conteúdo, você descreve muito bem as cenas.

Mas é uma triste realidade, estamos aprisionados e crianças inocentes tão cruelmente jogadas ao mundo sofrem a falta mais inadmissível: comida!

Tenho dois textos em meu blog acerca deste descaso, que inclusive nós mesmos acabamos por cometer. Lhe convido a conhecê-los: Moleque de Rua e Menina da Vida.

Abraço,

Rafael

Madalena Barranco disse...

Ilaine, querida,

Aprender a voar, como você muito bem disse... Provoca dor nas asas e na musculatura do peito...

Beijos