quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O lago

O pensamento dava-lhe alfinetadas e a cabeça lhe doía de forma muito rara. Havia pintado muito naquele dia, e em seus dedos ainda havia restos de tinta, ela secara por entre as dobras da pele e nas unhas. Agora os pincéis descansavam nos recipientes. A tela estava manchada de cores fortes – pintara um quadro abstrato – vago, para quem o via. Em suas cores e em seus traços, porém, pairavam sentimentos. Depositara na pintura toda a angústia que a povoara nos últimos dias. Imagens e aturdimentos estavam ali desenhadas e, de certa forma, palpáveis. A noite escura era como uma parede sólida que a retinha naquele quarto. A sala morna aguardava-a com uma sinfonia de silêncios e a solidão gritava-lhe aos ouvidos. Na lareira repicava uma acha de lenha e o vinho ainda tingia o copo de cristal. Assim também estava o lago, silente. O lago que derramava suas águas pelas formas sinuosas do leito formado através dos anos. De sua janela, ela podia ver um prisma de luz que se espelhava em suas águas paradas e resplandescentes. Era a luz leitosa da lua. Nada se movia, nenhuma onda. Ela olhou a escuridão que cobria as árvores e as flores e sentiu que era porosa e úmida. Abriu a porta e caminhou por entre o arvoredo. No silêncio pleno, os passos pareciam trovoadas. Ela sabia que precisava ir... Uma estranha dor governava o instante.


Imagem, aqui

17 comentários:

Dilberto L. Rosa disse...

Nossa, quantas lindas sinestesias, minha cara... Esta mulher se encontrava presa num quadro de Monet, tamanhos os detalhismos de luzes e formas... Por o silêncio: ela pintava dentro de um quadro e queria libertar-se... Será que conseguiu?! Belíssimo mini-conto, parabéns! Abração e vê se aparece, hein?!

Anônimo disse...

Lindo minha amiga!
Este quadro não me é de todo desconhecido.
Bjs.

lula eurico disse...

Lindo e suave.
Teus textos são tessituras, que passam uma delicadeza, mesmo nos temas mais densos...


Abraço fraterno.

Francisco Sobreira disse...

Cara Ilaine,
Você cria uma atmosfera que sublinha a situação da personagem. E já como acontecera com "Sofia e Magnus", o final fica aberto à interpretação do leitor. Um beijo.

Jacinta Dantas disse...

Um mundo que entra nos mundos enigmáticos do feminino. Para mim, um mosaico, com um todo que são partes e partes que são o todo. Ela, a personagem, é a luz, a lua, a escuridão, as árvores, as flores, o passo, o caminho, o silêncio...
Mais um de seus deliciosos textos.

Bjs

eder ribeiro disse...

Qtos detalhes neste teu conto querida Ilaine, senti-me nele. Bjos.

ítalo puccini disse...

bonita sua narrativa, ilaine. suas. pois li outras mais aqui no teu lindo espaço.

beijos.

Canto da Boca disse...

Ila, o quadro cria movimentos e acompanhamos-o, como se ele tivesse vida própria, autonomia, deixa de ser objeto, coisa, para ser um organismo vivo, dinâmico. Um mundo dentro de outros mundos.

Beijos!

Carla disse...

O texto me leva a lugares indescritíveis... Não sei comentar, só sei sentir!


Bjos

Zeca disse...

Querida Ilaine, não voltei! Apenas usei mais um espaço para tentar soltar o grito preso na garganta, diante da impotência em mudar o quadro político do pais que amo tanto. Sinto-me como a personagem deste seu magnífico mini-conto, sabendo que é preciso ir, mas para onde? Pena que o quadro no qual vivemos atualmente não tenha o colorido e a textura densa e criativa que dão vida ao teu quadro!
Beijo, saudade.

Josselene Marques disse...

Ilaine:

Como sempre é um prazer visitar este seu cantinho mágico. Você nos faz viajar com seus lindos textos.
Obrigada, amiga.
Uma ótima semana.
Abração.
Josselene.

Jacinta Dantas disse...

Tem um selinho prá você lá no florescer.
Bjs e boa semana

Sandra Gonçalves disse...

Você não somente escreve, vc desenha com palavras...Parabens.
Bjos achocolatados

Luis Eustáquio Soares disse...

"um estranha dor governava o instante".

Aqui a qualidade intensiva de seu texto, com a definição perplexa de doer-nos o instante que passa, flui, enquanto silenciamos. Um grito.
b
l

Sandra Gonçalves disse...

Voltei, reli e me identifiquei,
Lindo demais.
Bjos achocolatados

Daniel Hiver disse...

Ao pasear meus olhos nas palavras do teu texto, dei de cara com algo bastante familiar:
Assim como a mulher que "depositara na pintura toda a angústia que a povoara nos últimos dias," eu, quando escrevo, muitas vezes deposito nos poemas toda percepção de meus vazios e minha complexidade.

Ah! Ia esquecendo!
Como somos meio parecidos no que escrevemos e sentimos t deixo um ABRAÇO!

Um belo final de semana no outono europeu.

A.S. disse...

Ilaine...

Belo o teu texto... me senti viajando por um lugar pleno de imagens poéticas!

Beijos
AL