quinta-feira, 24 de março de 2011

Meu ônibus



Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia eu fiz o cimento da minha poesia.

Vinícius de Moraes

Todos os dias esperava por meu ônibus. Era um veículo amarelo, flavo, como as gemas dos ovos. Inquieta e feliz, apreciava a sua passagem, acompanhando- o, em sua lentidão, até perdê-lo de vista. Aos meus olhos, era o ônibus mais formoso do mundo, o meu Expresso Dourado - assim passei a chamá-lo.

A viatura cor de ouro vinha na textura mais perfeita de meus sonhos. Na parte frontal, rente ao grande vidro, havia o primeiro banco, o meu trono. Minha maior ambição era viajar com o Expresso Dourado e sentar naquela poltrona - a da frente, de onde eu poderia acompanhar, em larga vista, os panoramas mais belos de minha terra.

Eis que, após longa espera, meu desejo estava por se realizar. Mamãe faria compras na cooperativa de Poço de Tapiras, a vila mais próxima de nossa aldeia, e me levaria junto. Para chegar até lá, teríamos que viajar com o Expresso Dourado, indispensavelmente. Entrei em delírio, já nem dormia. Durante dias fiquei torcendo para que o trono do ônibus estivesse desocupado. Estava completamente obcecada.

No dia da viagem, pude usar o meu vestido floreado, vestido de domingo. Alisava delicadamente as pregas e ajeitava os topes com precisão, verificando dezenas de vezes se tudo estava na mais perfeita ordem. Naquele momento era menina-princesa, posto que, sem delongas, iria sentar em meu trono. Quando o ônibus se aproximou devagarinho, meu coração chegou a convulsionar. Olhei para o grande vidro e quase morri de felicidade, pois o primeiro banco estava desocupado. Sorri aliviada... Chegara, enfim, o meu momento!

Todavia, a quantidade exorbitante de malas e bolsas, balaios e pacotes amontoadas ao lado do motor, impediram a minha passagem para o assento frontal. Num repente, esqueci que era uma espécie de fadinha em roupas de domingo e, com a agilidade de um primata, tentei transpor os obstáculos, quando então uma grossa voz interrompeu minha odisséia. Era a cobradora que estrondeou:

- Vá sentar em outro lugar, menina! Não vê que aqui está cheio de bagagem?

Bagagem? Sentar em outro lugar? Mas como? Suas palavras soaram como um trovão. Sem nada entender, minhas pernas amoleceram e eu perdi as forças. Meu grande sonho fora destruído ali... em questão de segundos – haviam proibido de me sentar no trono. Todo o espaço se encheu com os fragmentos de minha mágoa. A cobradora olhou-me com a aspereza de um ditador. Estremeci de medo e saí correndo.

Pálida, atravessei o corredor do ônibus e fui sentar ao lado de minha mãe. Segurei sua mão com a fragilidade de um bebê. Uma grossa lágrima turvou meus olhos e caiu em cima do vestido floreado. Esfreguei a lágrima até secá-la. Não queria que vissem o meu choro. Com os olhos flamejados, sentada num banco qualquer do meu ônibus, segui minha viagem para Poço de Tapiras.

A vida seguia o seu rumo. E o Expresso Dourado continuava a passar pela estrada de minha aldeia dia após dia, ano após ano, e eu prossegui a esperá-lo, fielmente. Contudo, já não vinha dotado com o mesmo brilho de outrora, perdera sua cor - a cor de meu entusiasmo.


Imagem by: -bookslove66

11 comentários:

Samaryna disse...

Ilaine, quando eu escrevo, vou buscar nas minhas memórias as minhas histórias. Ler essa sua história me fez menina, e fazia muito tempo que eu não me sentia assim. Mais do que o meu afeto, eu deixo o meu agradecimento por reparti com todos este momento de tua vida.

Anônimo disse...

...viajei com voce.hoje eu tb logo cedo fiz um post falando da infancia....o melhor dele(s) foi sentir a presença,o cheiro da mãe)

abraço afetuoso.

Paulo Francisco disse...

¨Contudo, já não vinha dotado com o mesmo brilho de outrora, perdera sua cor - a cor de meu entusiasmo.¨
Engraçado estava escrevendo um conto sobre a minha infãncia e que ela não tinha a mesma cor, etc etc etc.

Adorei o texto!
Um beijo.

Unknown disse...

Texto maravilhoso.

Beijo.

Anônimo disse...

As desilusões da infância.
Lindo texto amiga!
Bjs.

Paulo disse...

Sempre criamos expectativas e cultivamos sonhos que desmoronam frente a obstáculos que não incluímos neles, pena.

Belo texto Ilaine

guru martins disse...

...mas a cobra(dora)
morreu triste
e entediada
sem nenhuma
boa lembrança
de certo, não?

bj

dade amorim disse...

É, Ilaine, e assim a gente começa a conhecer o mundo.
Beijo pelo bonito texto.

Loba disse...

Tão terna a história! E, como sempre, tão bem contada! Outros sonhos vieram, porque de sonhos somos feitos. Que tal contá-los, um a um? rs...
Beijo querida!

Paula Barros disse...

Ao ler seu texto, escuto a voz da menina alegre entusiasmada, escuto a voz da criança triste, escuto a voz da cobradora...vejo, sinto. É surpreendente esta narrativa que nos coloca participando, vivenciando.

E no final, um grande final, o de que sem entusiasmo, tudo na vida, perde a cor, sem entusiasmo vivemos momentos sem vida.

beijo

Canto da Boca disse...

(às vezes a estupidez dos adultos interfere pra sempre na vida de uma criança...)