Com as lágrimas do tempo e a cal do meu dia eu fiz o cimento da minha poesia.
Vinícius de Moraes
Todos os dias esperava por meu ônibus. Era um veículo amarelo, flavo, como as gemas dos ovos. Inquieta e feliz, apreciava a sua passagem, acompanhando- o, em sua lentidão, até perdê-lo de vista. Aos meus olhos, era o ônibus mais formoso do mundo, o meu Expresso Dourado - assim passei a chamá-lo.
A viatura cor de ouro vinha na textura mais perfeita de meus sonhos. Na parte frontal, rente ao grande vidro, havia o primeiro banco, o meu trono. Minha maior ambição era viajar com o Expresso Dourado e sentar naquela poltrona - a da frente, de onde eu poderia acompanhar, em larga vista, os panoramas mais belos de minha terra.
Eis que, após longa espera, meu desejo estava por se realizar. Mamãe faria compras na cooperativa de Poço de Tapiras, a vila mais próxima de nossa aldeia, e me levaria junto. Para chegar até lá, teríamos que viajar com o Expresso Dourado, indispensavelmente. Entrei em delírio, já nem dormia. Durante dias fiquei torcendo para que o trono do ônibus estivesse desocupado. Estava completamente obcecada.
No dia da viagem, pude usar o meu vestido floreado, vestido de domingo. Alisava delicadamente as pregas e ajeitava os topes com precisão, verificando dezenas de vezes se tudo estava na mais perfeita ordem. Naquele momento era menina-princesa, posto que, sem delongas, iria sentar em meu trono. Quando o ônibus se aproximou devagarinho, meu coração chegou a convulsionar. Olhei para o grande vidro e quase morri de felicidade, pois o primeiro banco estava desocupado. Sorri aliviada... Chegara, enfim, o meu momento!
Todavia, a quantidade exorbitante de malas e bolsas, balaios e pacotes amontoadas ao lado do motor, impediram a minha passagem para o assento frontal. Num repente, esqueci que era uma espécie de fadinha em roupas de domingo e, com a agilidade de um primata, tentei transpor os obstáculos, quando então uma grossa voz interrompeu minha odisséia. Era a cobradora que estrondeou:
- Vá sentar em outro lugar, menina! Não vê que aqui está cheio de bagagem?
Bagagem? Sentar em outro lugar? Mas como? Suas palavras soaram como um trovão. Sem nada entender, minhas pernas amoleceram e eu perdi as forças. Meu grande sonho fora destruído ali... em questão de segundos – haviam proibido de me sentar no trono. Todo o espaço se encheu com os fragmentos de minha mágoa. A cobradora olhou-me com a aspereza de um ditador. Estremeci de medo e saí correndo.
Pálida, atravessei o corredor do ônibus e fui sentar ao lado de minha mãe. Segurei sua mão com a fragilidade de um bebê. Uma grossa lágrima turvou meus olhos e caiu em cima do vestido floreado. Esfreguei a lágrima até secá-la. Não queria que vissem o meu choro. Com os olhos flamejados, sentada num banco qualquer do meu ônibus, segui minha viagem para Poço de Tapiras.
A vida seguia o seu rumo. E o Expresso Dourado continuava a passar pela estrada de minha aldeia dia após dia, ano após ano, e eu prossegui a esperá-lo, fielmente. Contudo, já não vinha dotado com o mesmo brilho de outrora, perdera sua cor - a cor de meu entusiasmo.
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